‘Padroeira da Liberdade’ e símbolo do rock nacional, Rita Lee morre aos 75 anos

“Mau exemplo, mas gente boa”, segundo a própria estrela, Rita personificou a autenticidade em tempos de repressão e emplacou sucessos atemporais sobre amor, luxúria e afeto.
Rita Lee (1947-2023) foi uma das principais cantoras da música brasileira. (Foto: Guilherme Samora/Divulgação; Arte: ZACHPOST).
Rita Lee (1947-2023) foi uma das principais cantoras da música brasileira. (Foto: Guilherme Samora/Divulgação; Arte: ZACHPOST).

Atualizado em 03/04/2024 · 21:12 (BRT)

 Atualizado em 16/05/23, 18h21, para acréscimo de informações.

O rock brasileiro está órfão de sua estrela mais potente, transgressora e tenra. Rita Lee morreu nesta segunda-feira (8), em São Paulo, aos 75 anos, cercada de sua família. Cantora, compositora, musicista e escritora,  a artista consolidou uma reputação inquestionável ao longo de 50 anos de carreira e vários sucessos. Fundou ainda a pioneira banda Os Mutantes, foi precursora da Tropicália e um talento inventivo em meio ao período mais repressivo da ditadura militar — o que a ascendeu como a “Rainha do Rock”, apesar de achar o título um tanto cafona.

“Padroeira da Liberdade” soa mais contundente ao legado de Rita Lee, de acordo com a própria, em entrevista à Rolling Stone Brasil. Encampou uma revolução nos costumes, personificou a rebeldia e a desobediência civil a partir de músicas irreverentes, algumas repletas de duplo sentido e momentos de absoluta franqueza. O “tal de Roque Enrow” pulsava nas veias de Rita e dela vertia mais rock and roll. 

Um ícone que transitou entre gêneros musicais, lançou tendências além dos palcos e discos, uma entidade desbocada, altiva e magnética, empossada de visuais arrojados, madeixas ruivas e óculos coloridos — descrevendo a si mesma como a “Santa Rita de Sampa”, a “deusa pagã do Butantã” e a “mãe menina da Pompeia”. Mas entre tantas camadas excêntricas despidas de qualquer senso de falsa modéstia, predominava o carisma empático que emanava da pessoa por trás da arte. 

Rita desenvolveu uma conexão duradoura com milhões de fãs cantando para os deslocados, aqueles que eram a “ovelha negra” da família e também aos que roubariam “os anéis de Saturno” por amor. Fazia questão de afrontar “a moral e os bons costumes” impostos pela censura dos militares, ao ter a audácia de compor sobre sexo, luxúria e afeto sob sua própria pespectiva feminina e livre. Era o espírito do tempo de um mundo em desconstrução, uma das explicações para seu impacto cultural. Ao todo, vendeu mais de 55 milhões de discos e lançou mais de 30 álbuns.

A artista estava em tratamento contra um câncer de pulmão diagnosticado em 2021, sendo assistida em sua residência na capital paulista, de acordo com o comunicado publicado pela família. Na tarde desta terça-feira (9), o presidente Lula decretou luto oficial de três dias pela morte da cantora.

Mau exemplo, mas gente boa

Rita Lee nasceu e cresceu em São Paulo. Tinha ascendência norte-americana por parte de pai e italiana, do lado materno. Teve o primeiro contato com a música ainda no colégio. E o desempenho nas aulas de canto da criança agitada se sobressaia positivamente das demais disciplinas escolares. 

O potencial artístico desabrochou com Os Mutantes, banda que fundou com os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, em 1966. O trio deixou uma marca profunda na cultura popular, seja pela atitude subversiva movida a LSD e transgressão juvenil, como também pela sonoridade, introduzindo instrumentos elétricos e dissecando sons estrangeiros. 

“Eu era a única garota roqueira no meio de um clube só de Bolinhas, cujo mantra era: para fazer rock tem que ter culhão. Eu fui lá com meu útero e ovários e me senti uma igual, gostassem eles, ou não”, relembrou a Rita Lee em sua biografia. 

O rock psicodélico da banda se fundiu ao movimento da Tropicália, colocando-os ao lado de compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé. “[O grupo] veio de outro planeta para dominar o mundo”, disse a cantora em sua primeira entrevista ao jornal Folha de São Paulo. A ousadia da banda produziu um vasto catálogo de clássicos como “Baby”, “Balada de Louco” e “Ando Meio Desligado”.

Rita saiu do grupo  em 1972 e formou a banda Tutti Frutti — uma fase agitada na qual lançou o álbum “Fruto Proibido” (1975), considerado um ponto de virada na carreira da artista, conheceu Roberto de Carvalho, seu grande parceiro de trabalho e de vida, enfrentou a prisão grávida no ápice da ditadura militar, abraçou a maternidade, e que culminou na sua carreira solo em 1978.

Foto promocional de Rita Lee e Roberto de Carvalho.(Acervo MIS/RJ/Divulgação)

Mesmo sendo uma das artistas mais censuradas pelo regime — algo que de forma irônica a deixava orgulhosa —, a cantora manteve a produção musical intensa, prolífica e ousada, emplacando sucessos atemporais como “Desculpe o Auê”, “Baila Comigo”, “Erva Venenosa”, “Mania de Você”, “Amor e Sexo” e “Lança Perfume”.

A trajetória nos palcos a fez conquistar uma legião de fãs, inclusive na realeza britânica. Em 1988, o Daily Mirror publicou um relato de que o Rei Charles III, o príncipe de Gales na época, solicitou que fosse tocado um disco de Rita Lee durante um banquete na embaixada britânica em Paris. Quando o LP foi colocado no toca-discos, o futuro monarca “já conhecia a letra de cor”, ainda de acordo com a publicação.

Deixou de se apresentar em shows em 2012, mas não parou. Escreveu livros infantis, embarcou no ativismo pelo direito dos animais e publicou sua autobiografia, em 2016. E nunca parou de ser implacável, principalmente com quem estava no poder. Quando soube do diagnóstico de câncer, Rita batizou o tumor maligno de Jair. E em 2021, criticou o ex-presidente de extrema direita. “É assustador ver gente no comando com mente tão ultrapassada. Me enche o saco o racismo, a misoginia, a homofobia. Não tenho paciência para isso”.

A cantora morreu às vésperas de lançar sua segunda autobiografia, dedicada a memórias do período de tratamento. Porém, especulou sobre sua partida já na primeira, prova de que o assunto nunca foi um tabu para a artista. Rita Lee escreveu até como deveria ser seu epitáfio: “Ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”.

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