O teu passado te condena? Polêmica com influenciadores suscita debate sobre o preconceito nas redes sociais

Jacaré Banguela e Cocielo foram criticados por comentários considerados racistas no Twitter e se complicaram ainda mais depois do resgate de outras publicações duvidosas.
Histórico de tuítes preconceituosos de Júlio Cocielo provocou debate nas redes sociais (Fotos: Reprodução/Twitter e Reprodução/Canal Canalha/YouTube; Ilustração: Tiago de Moraes/ZACHPOST)

Atualizado em 30/04/2020 · 17:55 (BRT)

Tiago de Moraes, João Rafael Venâncio e Ana Beatriz Silva

Difícil foi ficar indiferente em meio ao debate que revirou a internet nas últimas semanas — tudo por conta da controvérsia envolvendo vários comentários preconceituosos publicados pelo youtuber Júlio Cocielo em sua conta no Twitter. Cocielo fez uma comparação considerada racista a respeito do jogador francês, Kylian Mbappé, ao dizer que o atleta “conseguiria fazer uns arrastão [sic] top na praia”. Enquanto tentava arranjar uma desculpa, o influenciador se complicou ainda mais depois que internautas resgataram mais tuítes ofensivos, e perdeu seguidores e contratos publicitários com várias marcas. Não demorou muito para a polêmica implicar outras personalidades.

No mesmo balaio, o influenciador Cauê Moura também foi exposto por piadas ofensivas — algumas delas envolvendo estupro e pessoas com HIV — e teve o contrato com uma startup de financiamento rescindido. Tanto Cocielo e Moura se retrataram publicamente pelos comentários. Dias depois, o humorista Rodrigo Fernandes, o Jacaré Banguela, se juntou à controvérsia após tentar fazer graça sobre o estilo do ator e rapper Jaden Smith.

Tenho quase certeza que o filho do Will Smith me pediu dinheiro ontem na esquina da rua Haddock Lobo dizendo que ‘tava’ olhando meu carro”, escreveu. No entanto, teve uma postura diferente de outros influencers expostos. Repreendido pelos internautas — inclusive pelo youtuber Pablo Peixoto — Rodrigo minimizou os comentários negativos e ainda desdenhou a sugestão de Pablo, classificando a atitude do influenciador digital como uma “tentativa de censura”.

Alguns internautas reagiram e passaram a cobrar as marcas e empresas envolvidas com o humorista. Posteriormente, Jacaré Banguela até cedeu e apagou o post, mas o estrago já estava feito: foi tirado do ar no canal Comedy Central, no qual participava de programas e especiais, e dispensado da função que fazia em um quadro do Programa Eliana, no SBT.

Em meio a polêmica, Cocielo — dono do quinto maior canal brasileiro no YouTube em número de inscritos, com cerca de 17 milhões de seguidores — apagou quase 50 mil publicações de sua conta no Twitterde acordo com medição feita pelo portal G1. Rezende Evil foi mais drástico. Excluiu todos os 68 mil tuítes “sem querer”.

Whindersson Nunes também apagou tuítes antigos, mas se desculpou (antecipadamente) e admitiu que já tuitou coisas preconceituosas. “No passado já disse várias bosta [sic]. Eu nem gostava de gay e dizia que quem era gay não entrava no céu. E no meu casamento esse ano uma das madrinhas se chama Rafael, pra ver como as coisas mudam. Então quem quiser procurar tweets antigos fique à vontade”, postou em sua conta na rede social.

Dias depois do tuíte sobre o jogador francês, Júlio Cocielo se manifestou em um vídeo publicado em seu canal, pediu desculpa pelos comentários e afirmou que mudou o comportamento depois das críticas. Hoje eu leio tudo aquilo que eu postei e me sinto envergonhado. Foram coisas absurdas. Aquele monte de merda que eu falei está muito distante de quem eu sou hoje. Eu aceito todas as consequências. Porque eu fui imaturo. Eu fui irresponsável. Eu era completamente diferente da pessoa que sou hoje”, relata em vários momentos da gravação.

Youtubers negros ressaltaram que a questão vai muito além das piadas racistas. Spartakus Santiago lembrou que vários dos seguidores de Cocielo nas redes sociais — principalmente crianças — saíram em defesa do influenciador, criticado o “politicamente correto”, “vitimismo” e que a repercussão negativa não passa de “mimimi”.

Por outro lado, a digital influencer Luci Gonçalves enumera que o caso ressalta o empoderamento das minorias sociais contra o preconceito na internet. “Eu adoro quando tem pessoas que falam que estão com medo de falar alguma coisa pra gente preta, gorda e pra mulher. Se tem medo de falar é porque estamos fazendo a parada certa. Humor é uma coisa. Ser machista, racista, homofóbico… é um rolê completamente diferente”, diz em um vídeo sobre as polêmicas.

Em artigo publicado na New Order (ex-Trendr), a advogada e escritora Iara Gonçalves reflete sobre algumas oportunidades perdidas além das justificativas apresentadas. “Cocielo poderia ter feito o compromisso público de contribuir concretamente com a sua visibilidade e atuar junto a grupos que promovem a educação antirracista, junto a youtubers negros que tocam nesta temática e que tanto denunciam a falta de investimento de empresas e marcas em seus conteúdos, tão salutares”.

Na avaliação do especialista em mídias sociais, Marcelo Bueno, a polêmica escancara a responsabilidade que os influenciadores digitais têm sobre os conteúdos que emitem. “A situação fica mais complicada quando o influenciador repete os erros do passado. Agora, é necessário sempre reforçar que o linchamento público não é justiça. O influenciador deve ser responsabilizado e, em casos de crimes, ser denunciado para responder da maneira correta”, diz. Ainda de acordo com Bueno, dizer que as pessoas estão “sensíveis demais” também é um erro.

“É necessário uma reflexão que as pessoas estão lutando por direitos e algumas piadas são extremamente ofensivas e quando você ofende, só resta ter uma postura humilde de se desculpar. A dinâmica diferente que as redes sociais trouxeram é que as comunidades estão mais unidas e situações como essas ganham forças. É necessário uma postura de muito humildade para recuperar a confiança das pessoas. Enfrentar a internet nunca é uma boa opção, argumenta Marcelo Bueno, que também é organizador do Blogando.

Posição partilhada também pela consultora em comunicação e marketing, Fernanda de Almeida, que ressalta a necessidade de uma conduta prudente tanto das personalidades quanto de qualquer outro usuário da internet. “Porque se formos considerar o seu posicionamento apenas depois de se tornar uma pessoa pública, significa que as pessoas “não-públicas” podem pensar e dizer qualquer coisa, cometer qualquer tipo de intolerância. Penso que nossa sociedade deve buscar promover a tolerância, o respeito à diversidade. Se a pessoa é pública, ou não, não é o ponto principal. A pessoa pública ou não-pública deve responder pelos seus atos”.

Já para a advogada Cristiane Russo, sob o ponto de vista legal, a polêmica que rondou a web nas últimas semanas ilustra a linha tênue entre a liberdade de expressão e o que pode ser enquadrado como injúria, calúnia e difamação. “Cada caso é um caso e precisa ser avaliado separadamente, ouvindo devidamente as partes envolvidas. Mas a questão fundamental é que você é responsável pelas coisas que escreve na internet, ainda que tenha se esquecido do que postou, independentemente de ser um youtuber, pessoa pública ou não. Isso já deveria ser uma obviedade”, avalia.

Cocielo não ficou muito tempo longe do YouTube depois do escrutínio público do tuíte sobre Mbappé — e dos demais posts desenterrados pelos usuários. O desempenho do canal também não apresentou variações gritantes no número de visualizações em comparação com o mês anterior. Afinal, Júlio Cocielo, Cauê Moura, Whindersson, Rezende Evil e tantos outros criadores de conteúdo para a internet têm uma base composta por milhões de fãs. Mas se os influenciadores atrelados na história conseguirão de volta o mesmo prestígio comercial de outrora, isso é um cenário muito difícil cravar.

A recuperação da imagem do influencer pode acontecer, se o aprendizado for genuíno. O público sabe reconhecer um pedido de desculpas para não perder mais patrocínios, de um sincero”, avalia a consultora Fernanda de Almeida.

No que se refere a postura das marcas, Almeida entende que é preciso avaliar mais o tipo de conteúdo e o perfil do influenciador, ao invés da quantidade de seguidores e curtidas. “O conteúdo do influencer importa e muito. Ao patrocinar, a marca chancela o conteúdo que ele produz. Por isso ela precisa conhecer muito bem a personalidade à qual está unindo seu nome. Os valores dessa pessoa representam os valores da marca? É positivo se unir a ela? Como o público da marca vê o influenciador? São perguntas básicas para avaliar esse tipo de união”.

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