‘This is America’, clipe provocador de Childish Gambino engatilha debate sobre a violência racial

Carregado de simbolismo, vídeo do artista (aka Donald Glover) acumula mais de 50 milhões de visualizações em três dias, teorias e suscita momentos chocantes da história recente dos EUA.
Childish Gambino alterna entre explosões de dança e explosões de fúria no videoclipe de “This is America” (Ilustração: ZACHPOST sobre Foto: Reprodução/YouTube)

Atualizado em 27/06/2019 · 17:48 (BRT)

Por Tiago de Moraes e João Rafael Venâncio, ZACHPOST Staff

Bastam apenas 52 segundos de “This is America” para provocar a primeira interjeição de susto. A introdução entoada por um coral que remete aos tradicionais grupos de black music é abruptamente interrompida quando Childish Gambino (também conhecido como Donald Glover) atira em um negro encapuzado à queima roupa.

Lançado no último final de semana, o registro é o primeiro single de Donald Glover, sob a alcunha de Childish, em anos. Ator, roteirista e criador da premiada série “Atlanta”, Glover acumula 5 indicações no Grammy — inclusive de Álbum do Ano — por conta de seu último álbum, “Awaken, My Love”, lançado em 2016. Hiro Murai, parceiro de longa data do artista, assina a direção do vídeo. (Veja abaixo).

O novo clipe do artista traz uma crítica provocadora sobre a tensão racial e a posse de armas nos EUA em uma sequência carregada de simbolismos, violência gráfica e ironia. Gravado em um pavilhão industrial, o vídeo mostra Glover cantando e dançando em primeiro plano, enquanto uma série de acontecimentos se desenrolam, parte deles protagonizados pelo próprio artista, alternando entre explosões de dança e explosões de fúria.

A narrativa complexa também despertou a atenção dos internautas. O clipe já soma mais de 50 milhões de visualizações no YouTube e milhares de comentários de internautas tentando decifrar as mensagens presentes tanto na própria apresentação de Childish quanto nas coisas escondidas nas entrelinhas, um fenômeno cultural semelhante ao registrado na época de lançamento de “Formation”, de Beyoncé.

Os dois registros abordam as aspirações de estrelato e a valorização da cultura afro-americana, com negros em papéis de destaque no mainstream, contrastando justamente com a realidade perturbadora da brutalidade policial e a violência armada.

Todas as referências possíveis

A única coisa definitivamente certa sobre o videoclipe de “This is America” é a intenção de provocar incômodo. Depois de matar o homem negro encapuzado na abertura, Gambino continua pulando sem camisa no cenário do clipe, acompanhado de um grupo de dançarinos.

Seria uma maneira de retratar a forma que o espetáculo é usado para desviar o foco de assuntos mais importantes? No Twitter, diversos usuários apontaram algumas referências. A exemplo da cena inicial, na qual a pose do artista lembra muito a figura de Jim Crow, personagem que se transformou em uma forma pejorativa de se referir às pessoas negras escravizadas, que depois virou nome de um conjunto de leis que estabeleceram as políticas de segregação racial no território americano.

https://twitter.com/AngelKhalil/status/993356787125338113/photo/1

Em outro momento do videoclipe, Childish metralha um coral gospel de jovens negros. Difícil não recordar do massacre de nove membros de uma igreja da comunidade negra, em Charleston, em 2015. “Essa é a América”, exclama o artista no refrão da música. Os Estados Unidos registram pelo menos um tiroteio com vítimas por dia, segundo um levantamento feito pela organização Gun Violence. Do começo do ano até agora, 85 tiroteios em massa entraram nas estatísticas policiais.

As coisas esquentam ainda mais. Na metade final do clipe, Donald volta a dançar e com protestos mais intensos ao fundo. Carros antigos, civis negros protestando e sendo perseguidos por policiais munidos com cassetetes.

Outros manifestantes usam roupas mais atuais, uma lembrança de que a tensão racial faz parte da história recente do país, desde os protestos de Detroit em 1967 até movimentos mais atuais como o Black Lives Matter. Em seguida, é mostrado um grupo de jovens afro-americanos com smartphones na mão. “Isso é um celularzinho/aquilo é uma ferramenta”, diz o verso da música.

Internautas entenderam a escolha da palavra em inglês “tool” como proposital, afinal “tool” pode ser usada para descrever uma ferramenta ou uma arma, o que seria uma referência ao caso de Stephon Clark, jovem negro morto no começo do ano pela polícia no quintal da residência de sua avó, na Califórnia. O aparelho celular nas mãos da vítima teria sido confundido com uma arma de fogo, de acordo com a versão dos policiais.

Propositalmente enigmático, o principal mérito do videoclipe dirigido por Hiro Murai consiste justamente em prender a atenção do espectador, ao passo que tanto o plano-sequência principal quanto a narrativa secundária demonstram ter o mesmo peso, sendo necessário assistir várias vezes e, mesmo assim, com várias indagações sem respostas.

Todos os olhos em Childish

A batida do single é sombria e monótona, atravessada por curtos momentos ensolarados de violão acústico. As palavras saem do clichê do trap para combinações mais desagradáveis. Childish também dedica boa parte da música para descrever sua própria ascensão social. “Ganhe seu dinheiro”, sugere a letra. O homem negro morto no começo do clipe volta tocando violão, além da participação especial de SZA.

Esse ponto aproxima a ultraviolência e ironia de “This is America” com a ideia central de “Formation”, a colisão entre o estrelato negro com os graves problemas sociais. Em depoimento para a revista The New Yorker, Donald trouxe o mesmo tópico. “As pessoas me aceitam agora porque tenho poder, mas ainda pensam: ‘Ah, ele acha que ele é a flor de ouro da comunidade negra, acha que ele é tão diferente’. Mas eu sou, no entanto”, diz.

“This is America” dispara para muitas direções e aponta inclusive para o próprio artista. Donald Glover, na mesma proporção em que é celebrado como protagonista, mente criativa e popstar demonstra estar plenamente ciente entre o abismo do entretenimento e as tensões reais da comunidade afro-americana.

Embalado no sucesso de crítica e repercussão de Atlanta, Donald ascendeu nos últimos anos como nome de peso em Hollywood. É um rapper, um cantor, um produtor, um ator, um comediante de stand-up, um roteirista, um diretor, uma estrela de TV, uma estrela de cinema e um showrunner de prestígio.

Não em uma ordem particular, diga-se, ou seguindo critérios de cronologia ou qualidade. Em 2017, Glover foi incluído na lista das 100 pessoas mais influentes do ano pela revista Time. A incursão musical como Childish Gambino, que começou até despretenciosa — o nome artístico veio de um aplicativo que gera apelidos do hip-hop aleatoriamente — conquistou uma reputação invejável graças a obras-primas como a faixa “Redbone”, do disco de 2016. Trabalhos de hip-hop experimentais e instrospectivos.

Gambino foge da imagem habitual de rapper, mais próximo do estilo geek dos millennials do que da imponência de um Kanye West. Pelas teorias e análises aos montes pela internet, a mensagem de “This is America” suscita um pouco de ambas as coisas. Childish é vaidoso e confiante, abstrato mas plenamente compreensível, ácido porém divertido e triunfante sequestrador da iconografia racista. (Atualizado às 11:01 de 10/05/2017 para acréscimo de informações).

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