◉Atualizado em 30/04/2020 · 18:13 (BRT)
João Rafael Venâncio, Tiago de Moraes
Conhecido pelas letras afiadas, fortuna, influência e também pela absoluta falta de modéstia, Kanye West está de volta às cenas com “Ye”, o primeiro álbum inédito desde “The Life of Pablo (2016). Em sete faixas ao longo de 24 minutos, o rapper de Chicago aborda escândalos de família, polêmicas recentes e fala abertamente sobre saúde mental. “Essa é a porra da minha bipolaridade, n**ga… é meu superpoder, n**ga não é incapacidade. Sou super-herói! Sou super-herói”, crava Kanye em “Yikes”.
O período de Kanye West no quase intocável estado norte-americano de Wyoming criou um álbum nascido do caos por causa do caos. Só no mês que antecedeu o lançamento, West fez comentários polêmicos sobre escravidão e violência na comunidade negra em entrevista ao site TMZ, tuitou elogios ao presidente dos EUA, Donald Trump e frases motivacionais como “Confie nos seus sentimentos. Pare de pensar tanto”. Mas o resultado final até que é fascinante, um alento aos fãs convencidos de que o rapper seria finalmente tragado pelo próprio hiperindividualismo.
“Ye” traz uma mistura interessante entre o Kanye West das antigas e o novo Kanye. “I Thought About Killing You” abre o álbum de forma inquietante e propositalmente repetitiva. “Today I thought about killing you / Premeditated murder / I think about killing myself /And I, I love myself way more than I love you” ( Hoje, eu pensei seriamente em te matar / Contemplei, premeditei / Pensei em me matar, e me amo muito mais que te amo), exclama.
Em outro trecho, o rapper comenta sobre as dificuldades financeiras que enfrentou nos últimos dois anos — e ressalta o quanto é forte. “Even when I went broke, I ain’t break” (Mesmo quando estava falido, não quebrei). A autoafirmação em linhas como “All you gotta do is speak on Ye”. Na faixa seguinte, “Yikes”, Kanye aborda sua saúde mental, enxergando o transtorno bipolar como um superpoder do que um problema, a mesma mensagem estampada na capa do álbum. “Eu odeio ser bipolar, é incrível”.
O ponto alto do álbum fica por conta da terceira música, “All Mine”, que ainda traz as participações pontuais de Valee e Ty Dolla $ign. Um flow marcante, que faz os amantes da antiga fase do Kanye despertarem. Na track, o rapper cita os rumores envolvendo Tristan Thompson, do Cleveland Cavaliers, que teria sido infiel a Khloé Kardashian quando ela estava grávida. “All these thots on Christian mingle, almost what got Tristan single” (Essas vadias no Christian mingle, quase deixaram Tristan solteiro).
“Wouldn’t Leave”, por sua vez, traz mais a sonoridade do novo Kanye West, aquele apresentado a partir do álbum “Yeezus”, com melodias e estilos que fogem do rap. Com participações de PARTYNEXTDOOR e Jeremih, Kanye fala sobre a reação da esposa, Kim Kardashian, depois da entrevista do rapper ao TMZ no mês passada, repleta de declarações embaraçosas. O entrevistador contra-argumentou, Kanye tentou se explicar no Twitter — e a emenda saiu pior que o soneto.
“A gente ouve dizer que a escravidão durou 400 anos. Quatrocentos anos? Parece uma opção”, afirmou o rapper de Chicago em um dos momentos da conversa, o que teria enfurecido Kim. “Told her she could leave me now but she wouldn’t leave” (Disse que ela poderia me abandonar, mas ela não ia embora). Mas a música termina na forma de conto sobre como os meninos sempre serão meninos. “Isso é o que querem dizer quando dizem ‘para o bem ou para o mal, hein? Para toda mulher que ficou com seu cara nas épocas boas e nas épocas ruins, essa [música] é para você.”
Além disso, Kanye ainda se vê à frente do seu tempo, comparando-se com George Jetson, do famoso cartoon da Hanna-Barbera. A alusão ao desenho não é a primeira feita pelo rapper. Em 2008, ano do revolucionário “808’s & Heartbreak”, West lançou o clipe “Heartless”, no qual aparece em um cenário da animação. Na faixa seguinte, “No Mistakes”, destaque para a pequena, mas interessante participação do rapper Kid Cudi, com quem divide o álbum “Kids See Ghosts”, mais um lançamento da G.O.O.D Music, gravadora fundada por West.
Outro talento do selo que faz uma ponta no disco é 070 Shake, na música “Ghost Town”. “I put my hand on a stove, to see if I still bleed / Yeah, and nothing hurts anymore, I feel kinda free”(Eu coloco minha mão em um fogão, para ver se eu ainda sangro / Sim, e nada dói mais, me sinto meio livre), repete a artista de New Jersey, numa performance magnética, quase uma ode ao entorpecimento total, mais emo rap impossível.
Fechando o álbum, “Violent Crimes” traz reflexões de Kanye sobre sua atitude em relação às mulheres e o que mudou depois de ser pai. “N**gas is savage, ni**as is monsters / N**gas is pimps, n**gas is players / ’Til n**gas have daughters, now they precautious” (“N***as é selvagem, n***as é monstro, n***as é cafetão, n***as é jogador, até os manos terem filhas, agora são cautelosos), avalia, dizendo que “tem medo do carma”.
A canção tem alguns versos questionáveis, como se o rapper encarasse a puberdade da filha algo ameaçador, mas fecha dizendo que gostaria de que North fosse um monstro da música. “Eu quero uma filha como Nicki [Minaj]. Prometo, eu vou transformá-la em um monstro, mas não há ménages”. O álbum encerra com uma mensagem de voz da rapper, supostamente permitindo a citação.
Várias publicações questionaram se “Ye” era um álbum ou EP por conta da curta duração, cerca de 24 minutos. Os dois discos anteriores, “The Life Of Pablo” e “Yeezus”, chegam a ter o dobro de gravações, 1h3min e 40 minutos, respectivamente. Contudo, Kanye esbanja na produção. Contar com Mike Dean é um privilégio e o intérprete de “Black Skinhead” o tem. West é genial em seu campo de trabalho, embora seja preciso reconhecer que o astro já lançou coisa muito melhor.
Pouca gente na indústria da música consegue criar música com uma assinatura própria e ambição estética, e por isso Kanye se mantém no Olimpo da cena atual. Depois de “Ye” é muito provável que as montanhas e paisagens rurais de Wyoming sejam o novo destino para hipsters em busca de inspiração. Por outro lado, talvez seja a hora de reconhecer que a música de West seja uma das poucas coisas pelas quais o rapper ainda mereça ser amado.