◉Atualizado em 23/10/2023 · 19:47 (BRT)
A seleção brasileira é a única pentacampeã do mundo. E vai continuar assim pelo menos até 2026. Alemanha e Itália – as únicas que podem alcançar a mesma quantidade de títulos mundiais – perderam o brilho de outrora há tempos. No Qatar, a seleção alemã definhou ainda na primeira fase. Já a seleção italiana não conseguiu se classificar pela segunda vez seguida. O título conquistado pelo time do Brasil no Mundial em 2002 gerou uma onda de otimismo que culminou em uma crença de que estaríamos destinados à glória de ter estampado uma sexta estrela na camisa da Canarinho. Desde então, esse pensamento desejoso inicialmente pueril tem sido manipulado para manter os mais de 213 milhões de torcedores confiantes, mesmo com evidências gritantes do contrário.
O estabelecimento da crença no Hexa como a versão brasileira do Destino Manifesto permitiu que a moral da torcida se mantivesse elevada mesmo após eliminações frustrantes em 2006, 2010, 2018 e a mais vexatória delas, em 2014, a derrota por 7 a 1 para a Alemanha, em casa. Aliás, o próprio “Hexa thinking” serviu de argumento indireto para bancar uma custosa e controversa edição da Copa do Mundo no Brasil. Futebol não é só o que rola dentro dos gramados, Futebol é identidade cultural – como envolve ainda poder, influência, capitalismo e marketing.
Ao deixar “a gente sonhar” nos últimos 20 anos, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) conseguiu manter seu status quo de ingerência, estabelecendo ciclos redundantes de gestão da própria seleção brasileira, abafando repercussões negativas de escândalos, com o custo mínimo de expurgar alguns bodes expiatórios quando necessário, para renovar a promessa de glória e de mudanças que nunca se confirmaram de fato.
O alvo da vez é o técnico Tite. E a forma pela qual caiu em desgraça se deu por méritos próprios, mas não fugiu do enredo estabelecido. Repetindo os antecessores, Tite ascendeu no papel do profissional que iria modernizar o esquema tático da seleção brasileira, servir de mentor para a nova geração de craques e conduzir o time para o Hexa prometido pelos deuses do futebol. Até o revés em 2018 parecia parte do “Grande Plano”. Coube ao arredio menino Neymar, atacante de 30 anos, o papel de protagonista desse estratagema, a cumprir sua jornada do herói – não convencional, diga-se, pois estamos em pleno século XXI – no cenário árido do Qatar.
Essa construção narrativa carregada de otimismo ufanista e construída a partir de estratégias de marketing, assessores, relações públicas, peças de propaganda e uma cobertura condescendente da imprensa trouxe considerável sucesso financeiro e prestígio para a CBF e vários envolvidos. Em 2021, a entidade bateu seu recorde de faturamento: R$ 971 milhões, um aumento de 47% em relação ao ano anterior. Para 2022, a previsão é ultrapassar a casa de R$ 1 bilhão.
Neymar é o atleta brasileiro mais influente do mundo e seu nome se transformou em uma marca estimada atualmente em R$ 1 bilhão. E Tite consta entre os principais palestrantes corporativos do país, descrito como um treinador cuja “marca registrada consiste na capacidade de motivar e contagiar, sem perder a calma ou a ponderação”. O Futebol é um esporte de alto rendimento financeiro.
Dissecar a anatomia da derrota da seleção brasileira na Copa do Mundo no Qatar passa primeiramente pela convocação de Tite, que apesar de escalar jogadores promissores como Richarlison, Rodrygo e Paquetá, resolveu combiná-los com veteranos de desempenho questionável, mas com excelente relacionamento interno na entidade, bancando Thiago Silva e Daniel Alves. O resultado em campo culminou em uma equipe sem entrosamento, alternando poucas – porém notórias – jogadas impecáveis com um desempenho coletivo insosso e apático. Quando precisou fazer substituições, Tite ficou sem opções satisfatórias e tentou improvisar, sem muito sucesso. Pior, esperava dos mais velhos o papel de mentores que ambos nunca fizeram muita questão de desempenhar em suas carreiras.
O que atrapalhou a equipe que desembarcou na península arábica não foram as dancinhas, os cabelos descoloridos e as comemorações eufóricas, mas a atmosfera de alienação, somado a limitações da persona coach do técnico. É justo ponderar que outras seleções relevantes também ficaram devendo. Ainda assim, a crença no Hexa parecia mais forte do que nunca, ignorando circunstâncias, o curto tempo de preparação física, polêmicas e o futebol capenga.
E as críticas, seguindo o exemplo de outras Copas, foram tratadas como torcida contrária e injustas, ou seja, blasfêmias. A grande celeuma antes da partida contra a Croácia contou com a contribuição de Neymar no atrito envolvendo o ex-goleiro Marcos, craques históricos do penta e o apresentador Tiago Leifert contra o ex-jogador e comentarista Casagrande pela audácia de questionar.
Neymar, por sua vez, estava à mercê das expectativas nele depositadas e a seleção virou refém do camisa 10. Essa relação de dependência mútua acabou por prejudicar ambos. Protagonista, Neymar segurou a bola demais e se manteve como alvo preferido dos adversários. A jornada do herói foi bruscamente interrompida por dois momentos anticlimáticos: a contusão no tornozelo logo na fase de grupos e a derradeira partida de eliminação do Brasil. Embora inegavelmente à altura do papel, o enredo dado ao craque de tão batido estava decorado de capa a capa na cabeça dos rivais.
O blecaute da seleção brasileira veio logo após o belo gol de Neymar no primeiro tempo da prorrogação. Com a intenção de ampliar o placar em pouco tempo em busca da vitória lendária, o time se desestabilizou por completo ao partir para a ofensiva. Quando Bruno Petkovic empatou para a Croácia, não restou nada além de um pouco de pensamento positivo para disputar os pênaltis. Logo depois, não sobrou mais nada, apenas lamentos. Neymar, o herói, não salvou o dia.
Após duas décadas, o “Hexa thinking” se mostra tanto um conceito esgotado quanto prejudicial. Seja pela ideação exagerada que provoca apagões em momentos determinantes, ou por ser essencialmente equivocado sobre como deveria ser a Canarinho ao mascarar o estado atual das coisas. É uma pressão insuportável.
À espera do título que resiste a chegar, essa crença baseada em vindouras vitórias avassaladoras, invictas, gols feitos por craques infalíveis pode animar momentaneamente por conta das campanhas de marketing e propaganda, porém, tem frustrado, deprimido e afastado milhões de torcedores brasileiros que não conseguem se conectar de forma genuína com sua seleção. Cabe a CBF e ao escolhido para comandar a equipe, Abel Ferreira, Jorge Jesus, Fernando Diniz ou seja quem for, a decisão de ressignificar o legado histórico da camisa verde amarela, sem se esquecer da razão pela qual aprendemos a amá-la. O futebol é conexão com a torcida.