◉Atualizado em 30/04/2020 · 18:18 (BRT)
Provocar fascínio e estranhamento. Duas coisas que David Bowie sabia fazer como ninguém, seja na pele de um astronauta, alienígena, aristocrata degenerado ou um profeta fúnebre. Em cinco décadas de carreira, o cantor britânico transgrediu regras, antecipou e moldou tendências em suas incursões pelo glam rock, soul music, krautrock, pop eletrônico, influenciando até a moda e o cinema.
Na mesma proporção, Bowie colecionou polêmicas e catalisou discussões a respeito de tabus, considerado um dos primeiros ícones nitidamente queer. Afinal, teve a capacidade de romper com as convenções tradicionais de sexualidade e gênero, apresentando-se de salto alto, maquiagem pesada e acessórios femininos, tudo isso nos anos 70. A trajetória pessoal do Camaleão do Rock, de igual modo, foi marcada pelo estilo de vida repleto da mistura mais explosiva de sexo, drogas e rock and roll.
“Love You Till Tuesday”
A estreia solo de David Bowie, em um álbum autointitulado lançado em 1967, pode ter sido um fracasso comercial, mas também não é um disco esquecível. Em seu primeiro trabalho de estúdio, o cantor se aventurou entre o pop rock britânico e o rhythm and blues dos Estados Unidos.
Boas faixas saíram deste trabalho, entre elas “Love You Till Tuesday” e “Rubber Band”, contudo o álbum completo soa bastante deslocado com o restante da discografia, ainda que ouvir o artista em busca da própria identidade sonora possa ser uma experiência bastante interessante.
“Space Oddity”
Foi com a chegada da humanidade à Lua que David Bowie deu um impulso na carreira, dois anos após o fracasso com o trabalho de estreia. Uma transformação completa, a primeira entre as várias reinvenções do artista ao longo da carreira.
O britânico adotou o visual andrógino e mergulhou no folk rock, mantendo algumas referências psicodélicas da época. A música “Space Oddity” virou um hit, o primeiro single do cantor a alcançar uma colocação entre as músicas mais tocadas da Inglaterra.
“The Man Who Sold The World”
A odisseia espacial não apenas ascendeu David Bowie ao nível de um superstar, como fez do artista uma lenda, graças ao estilo extravagante, fluído e encarnado em alter egos, a exemplo do álbum seguinte, “The Man Who Sold The World”, lançado em 1970.
Neste disco, o britânico personificou o glam rock de forma genuína, desde a icônica capa do álbum que mostra o britânico deitado usando um vestido longo, até a faixa-título, na qual o intérprete apresenta sua faceta mais criativa e assustadora, a de compor narrativas dignas de contos de terror.
“Life on Mars?”
Precursor da estética experimental dos anos 70, o cantor arrancou vários elogios da crítica em “Hunky Dory”, ao combinar elementos de vanguarda e as principais tendências musicais das duas décadas anteriores, o que pode ser ouvido nitidamente na faixa “Life on Mars?”, cuja melodia psicodélica transcende a ponto de se tornar surrealista.
Certamente um clássico da carreira de Bowie, ao lado de “Changes”, também presente no mesmo disco — o primeiro trabalho de estúdio com o guitarrista Mick Ronson, marcando o início de parceria bem sucedida.
“Five Years”
A fase andrógina e glamourosa chegou em seu ápice no álbum “The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars” (1972), na forma do roqueiro alienígena Ziggy Stardust, o qual veio do espaço para anunciar a chegada do apocalipse, decretada em “Five Years”. Mas havia abertura para a esperança, com a promessa da chegada de um homem das estrelas, quase um Messias, na faixa “Starman”, outro sucesso do álbum.
A persona apresentada por Bowie trouxe a síntese do que significava ser um rockstar à moda antiga, basicamente uma vida regada a drogas, promiscuidade e, claro, uma mensagem de paz.
Sob a alcunha de Ziggy, o britânico lançou outros três discos influenciados pela sonoridade do glam rock, “Alladin Sane”, a versão americana do alienígena; “PinUps”, dedicado a covers de bandas como Pink Floyd e The Who; e “Diamond Dogs”, sendo este último um trabalho conceitual baseado no futuro distópico da obra literária “1984”, de George Orwell.
“Young Americans”
Bowie se reinventou mais uma vez no álbum seguinte, “Young Americans” (1975), trocando o glam rock pelo soul e funk dos EUA, completamente despido do visual extravagante. Todavia, o timbre único e aveludado do artista combinou perfeitamente com o suingue puro e simples, tanto é que o britânico ganhou o rótulo de “plastic soul” nesta época.
A trajetória pelo gênero rendeu vários hits memoráveis, a exemplo da faixa-título e “Fame”, cuja letra foi composta em parceria com John Lennon. Mais do que cantar soul, David Bowie demonstrou novamente a habilidade de juntar referências impensáveis com maestria. Fez isso no disco conceitual “Station to Station”, lançado em 1976, no qual agregou o som dos sintetizadores e batidas mecânicas, e também apresentando sua nova persona, o austero e sombrio Thin White Duke.
No auge do abuso de drogas e excessivamente magro, o intérprete de “Golden Years” teve uma fase tão intensa como o alter-ego que ainda é difícil determinar a linha tênue que separa a criação de seu autor, principalmente pela quantidade de polêmicas e controvérsias acumuladas no período, incluindo algumas declarações simpáticas ao nazismo, as quais foram atribuídas pelo cantor ao constante consumo de entorpecentes.
“Heroes”
A mudança de David Bowie para Berlim trouxe novas perspectivas para a carreira do músico. Lidando com o vício em drogas, as brigas com o empresário e a crise matrimonial de um casamento pra lá de ruidoso, o cantor se sentiu atraído pela ebulição da cena musical alemã, em especial ao krautrock, movimento de rock e música eletrônica, do qual já tinha buscado inspirações no trabalho anterior.
A estadia não poderia ter sido mais produtiva. Bowie ajudou no processo de criação do disco de estreia do amigo Iggy Pop,“The Idiot”, e em seguida fez os álbuns “Low” e “Heroes” e “Lodger”, ou melhor, a celebrada trilogia de Berlim.
Minimalista e depressivo, “Low” expôs o estado de espírito angustiado de Bowie, com letras pontuais e arranjos instrumentais mais evidenciados, tomando a vanguarda da cena pós-punk que viria com força anos depois.
Mas o destaque da trilogia fica por conta do álbum “Heroes” e a faixa homônima, que narra uma história de amor separada pelo muro de Berlim, símbolo máximo da Guerra Fria. O único trabalho da fase inteiramente gravado na cidade.
Como compositor, Bowie traduziu a melancolia cotidiana de uma sociedade dividida, talvez o contato mais próximo com a realidade de toda a carreira do britânico. “Lodger”, por sua vez, serviu de referência para o período oitentista do rock, música eletrônica e world music.
David Bowie foi pioneiro de outro movimento musical, conhecido como os Novos Românticos, em 1980. Na música “Ashes To Ashes”, o intérprete trouxe de volta o personagem Major Tom, citado anteriormente em “Space Oddity”, servindo de inspiração para vários outros cantores desde então.
“Modern Love”
Depois do divórcio, do rompimento com o empréstimo e recuperado do vício em drogas pesadas, Bowie deixou o período instrospectivo e melancólico de lado para investir em um rock dançante, sempre com um toque experimental, algo notado nos ótimos discos “Scary Monsters” (1980) e “Let’s Dance” (1983).
Nestes dois dois trabalhos de estúdio, emplacou uma sucessão de hits memoráveis, como a vibrante “Modern Love”, uma combinação de improviso controlado, típico do jazz, com as batidas futuristas da música eletrônica. Porém, o resultado não foi o mesmo nos álbuns seguintes, “Tonight” (1984) e “Never Let Me Down” (1987), considerados mais fracos que os antecessores.
O britânico terminou a década de 80 de volta ao hard rock, integrando a banda Tin Machine, mas o grupo se desfez poucos anos depois, com apenas dois discos.
“Dead Man Walking”
O cantor retomou a carreira solo de vez em 1993, com o lançamento do álbum “Black Tie White Noise”, o qual teve uma recepção mais favorável do que os dois últimos trabalhos, sendo este voltado essencialmente para a música eletrônica do que o rock.
Nesta altura da carreira, Bowie não era somente um hitmaker, tinha a capacidade de moldar toda a cena musical, seja pelo experimentalismo exacerbado de “1. Outside” (1995), o drum and bass de “Earthling” (1997), ou pela jovialidade de “Hours…” (1999).
Em cada camada da explosão de texturas da faixa “Dead Man Walking”, por exemplo, é possível perceber algo em comum com outras músicas eletrônicas famosas nos anos 90 e 2000.
“Blackstar”
Bowie se uniu novamente ao produtor Tony Visconti para lançar “Heathen” (2002), o primeiro grande sucesso comercial desde a fase dançante de “Let’s Dance”, no qual o cantor aproveita para refletir sobre as angústias da humanidade. Logo em seguida, o britânico lançou “Reality” (2003), emplacando novos hits como “New Killer Star” e “The Loneliest Guy”.
No meio da turnê, o cantor teve um ataque cardíaco e ficou afastado da carreira por uma década, quando surpreendeu o público ao divulgar de surpresa o disco “The Next Day”, em 2013. Usou a mesma estratégia para lançar o álbum “★” (Blackstar), enquanto completava 69 anos e dois dias antes de sua morte.
No último disco de inéditas da carreira, o rockstar britânico endereçou uma despedida aos fãs através de composições mais densas e sombrias, trazendo também digressões de outros momentos da carreira, uma mistura de rock alternativo e jazz com breves momentos de música eletrônica, glam e soul. Um encerramento digno e corajoso que só poderia ter sido imaginado por alguém tão singular como artista quanto Bowie.
(Arte do Topo: Tiago de Moraes/ZACHPOST)