◉Atualizado em 30/04/2020 · 18:09 (BRT)
Depois de propiciar uma jornada imersiva sobre os fundamentos da ioga, o cineasta pernambucano Heitor Dhalia se volta novamente para a dureza da realidade cotidiana brasileira em “Tungstênio”, adaptação da premiada HQ homônima de Marcello Quintanilha. Um misto de thriller com romance policial, o longa-metragem apresenta perspectivas diferentes sobre um dia movimentado na Cidade Baixa, em Salvador, onde a aparente tranquilidade é interrompida pela ação de pescadores ilegais. (Confira o trailer abaixo).
A busca pelos suspeitos desencadeia várias situações extremas envolvendo pessoas aparentemente sem nada em comum, mas que dividem o mesmo espaço. Segundo o diretor, a obra permite uma leitura da tensão social arraigada no país e também reflexões a sobre relacionamentos abusivos, violência urbana, intolerância e machismo.“Tungstênio captura o ponto de tensão máxima que o Brasil chegou. Estamos à beira de uma explosão de caos. Um momento em que o fascismo nos rondeia, em que as redes sociais criam bolhas de ódio que se chocam”, argumenta.
Neste sentido, a narrativa aproxima do público figuras marginalizadas (PMs, informantes, traficantes e a própria comunidade), mas não há uma ideia reducionista de quem é o mocinho ou vilão. O policial Richard (Fabrício Boliveira) age à margem da lei em serviço e trata mal a esposa, Keira — interpretada por Samira Carvalho. A dona de casa, por outro lado, enfrenta o dilema de abandonar ou continuar dependente do marido agressivo. O ex-sargento do exército, Ney (José Dumont), mantém uma nostalgia pela ditadura, mas não vê outra alternativa senão pedir ao jovem traficante Caju (Wesley Guimarães) que faça algo para deter os pescadores.
Todos invariavelmente se deparam com suas próprias falhas de caráter e escolhas difíceis, inclusive contraditórias, mesmo que sejam carregadas de boas intenções — a princípio. “De uma maneira involuntária produzimos um retrato duro do País. Um Brasil onde a ideia romântica que tínhamos a respeito de nós mesmos foi deixada de lado, descreve o diretor.
Dos quadrinhos para o cinema
Em cartaz nos cinemas, “Tungstênio” (Pagu Pictures) se junta a outras adaptações no currículo do cineasta. “Nina” (2004), um dos longas mais celebrados de Heitor Dhalia, foi livremente inspirado na obra de Dostoiévski, e “O cheiro do ralo” (2006), outro destaque da filmografia, teve como base o romance de mesmo nome de Lourenço Mutarelli.
Enquanto os trabalhos anteriores tomaram licenças estéticas e narrativas mais significativas dos textos literários — vide as nuances de interpretação de Selton Mello em “O cheio do ralo” e a visão suja e sombria da capital paulista em “Nina” — , o processo de adaptação dos quadrinhos para os telonas da graphic novel reproduz fielmente os enquadramentos, diálogos, narração e a estrutura não linear da obra de Quintanilha, que participa da produção do longa como um dos roteiristas. “[O filme] tem desafios extras, existem muitas cenas de ação, briga, cenas no mar que é dificilíssimo. Um ponto de atenção era traduzir aquela prosódia do personagem para a boca dos atores”, explica o cineasta.
Lançada em 2014, a HQ (Editora Veneta) de Marcelo Quintanilha já ganhou seis traduções internacionais e foi premiada na categoria de melhor quadrinho policial no Festival d’Angoulême, na França. O quadrinista também é autor das HQs “Hinário Nacional”, “Todos os santos” e “Talco de vidro”. “É magnífico, especialmente graças à extrema dedicação e compreensão de todas as pessoas envolvidas no processo, obtendo uma fidelidade conceitual em relação à obra original que ultrapassa quaisquer critérios regularmente aplicados a adaptações”, diz Quintanilha.
Heitor Dhalia conta que conheceu o trabalho do artista por intermédio de um produtor interessado na adaptação cinematográfica do livro. “Ele acabou desistindo e segui com o projeto”. Ainda de acordo com o diretor, a equipe de produção se deslocou até a capital baiana para a escolha do elenco. “Queríamos encontrar as pessoas certas para dar corpo e voz para aqueles personagens”, recorda, acrescentando a preocupação com a representatividade. Entre os achados estão dois dos protagonistas, a modelo Samira Carvalho e o ator soteropolitano Wesley Guimarães.
Do elenco principal, somente Fabrício Boliveira (“Faroeste Caboclo”, “Segundo Sol”) e Zé Dumont (“Onde Nascem os Fortes”, “Trash”) possuem vasta carreira no cinema e TV — ambos nascidos no nordeste.