◉Atualizado em 07/06/2019 · 18:54 (BRT)
Vídeo de campanha pelo uso da camisinha manipula estatísticas para culpar as pessoas soropositivas pela disseminação do HIV, acusam entidades
Por Tiago de Moraes
Pessoas jovens dançando e curtindo a folia do Carnaval, todas muito sorridentes. Contudo, não se trata de um comercial genérico qualquer. Com uma alegre música de samba de trilha sonora, o vídeo da campanha do Ministério da Saúde alerta sobre os dados do HIV no país. “Milhões de pessoas brincam o Carnaval. No Brasil, 260 mil sabem que têm HIV e não se tratam. E estima-se que 112 mil têm o vírus e nem sabem. E você?”, diz o locutor.
Em seguida, o apelo para o uso de preservativos. “Previna-se da Aids e, se preciso, faça o teste de HIV”, encerra. O conteúdo da peça foi duramente criticado por sete organizações que atuam em prol de políticas públicas sobre aids. As entidades também reivindicam a retirada do vídeo do ar.
“De caráter aparentemente informativo, a frase é perigosíssima. Primeiro, porque traz uma mensagem subliminar que responsabiliza as pessoas com HIV pela disseminação do vírus que provoca a aids”, diz nota assinada pelo Fórum ONG-AIDS RS, o Fórum das ONG/AIDS do Estado de São Paulo (FOAESP) e a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS do Estado de São Paulo (RNP+SP). O mesmo gancho da campanha foi utilizado em outras peças do governo.
https://twitter.com/minsaude/status/834568472533217280/photo/1
As organizações que assinaram a nota de repúdio acusam o governo de omitir os problemas na gestão da saúde em diversas regiões do país. “Essas mensagens escondem da sociedade que em diversas cidades brasileiras há um enorme hiato, que pode chegar a até seis meses, entre o diagnóstico de HIV e a primeira consulta com um médico especializado. O filme utiliza os primeiros segundos para culpar as pessoas com HIV e no tempo restante se embola confundindo teste e camisinha”, argumentam o Fórum ONG-AIDS RS, o FOAESP e a RNP+SP.
Estimativas do Ministério da Saúde apontam que 827 mil pessoas vivem com HIV no Brasil. Das 715 mil pessoas diagnosticadas com o vírus, 455 mil fazem uso do tratamento antirretroviral, sendo que 410 mil — 90% das pessoas em tratamento — alcançaram a supressão viral com o tratamento. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o nível de supressão viral torna a pessoa não transmissível.
No período de 2010 a 2015 foram detectados 40,9 mil novos casos. A epidemia de HIV/Aids avança no Brasil na faixa etária de 20 a 24 anos, na qual a taxa de diagnóstico subiu de 15,6 casos por 100 mil habitantes, em 2006, para 21,8 casos em 2015. Entre os adolescentes o índice mais que dobrou, passando de 2,8 em 2006 para 5,8 em 2015, entre as pessoas de 15 a 19 anos, o índice mais que dobrou, segundo dados do Ministério da Saúde.
A Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+), o Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas (MNCP) e a Rede Nacional de Adolescentes e Jovens Vivendo com HIV/AIDS (RNAJVHA) também manifestaram nota de repúdio sobre o conteúdo da campanha.
“Pessoas com HIV sofrem diariamente com o preconceito e a discriminação, maior causa de abandono do tratamento. O acolhimento, que há tempos deixou de existir, e um serviço com profissionais de saúde capacitados e especializados garantiriam a adesão e a continuidade do tratamento”, defendem a RNP+, o MNCP e RNAJVHA, lembrando a média de 12 mil mortes anuais por causa da doença.
A Articulação Nacional de Luta Contra a Aids (Anaids) considera que a campanha “não dialoga com os direitos das pessoas vivendo com HIV/Aids”. A entidade argumenta que o governo prioriza a testagem e o tratamento em vez de abraçar novas estratégias e tecnologias.
“Precisamos refletir se no Brasil as ações e serviços de saúde pública alcançam a todos e a todas, respeitando suas singularidades e suas diferentes demandas e garantindo o acesso de cidadãs e cidadãos de forma equânime”, diz a Anaids.
Por meio de nota, o Ministério da Saúde enumera que a campanha quer justamente incentivar as 260 mil pessoas que não estão em tratamento a iniciarem o acompanhamento médico. A divulgação de dados é “fundamental” para que o público geral “possa conhecer os riscos de fazer sexo desprotegido”.
29,2% dos 44 mil jovens com menos de 25 anos identificados no Sistema Único de Saúde (SUS) com a doença estão em tratamento. Entre as pessoas na faixa de 25 a 34 anos, esse percentual é de 77,5%, mantendo-se superior a 80% em todas as outras faixas etárias até chegar a 84,3% entre os indivíduos acima de 50 anos.
No lançamento da campanha de carnaval deste ano em Salvador, o Ministro da Saúde, Ricardo Barros, reiterou o apelo da campanha. “Este ano, estamos apelando especialmente aos jovens que usem camisinha, façam a testagem e, se infectados, busquem tratamento, que é gratuito e o melhor do mundo. E que no carnaval só tenhamos boas lembranças”, defende.
“Ao associar o não tratamento de “260 mil pessoas com HIV” àquelas pessoas que não fazem uso do preservativo em suas relações sexuais, o Ministério da Saúde ressalta ainda mais o estigma as pessoas com HIV em todo o País”, completa a nota do Fórum ONG-AIDS RS, o FOAESP e a RNP+SP. A célebre frase de Abraham Laredo Sicsú, da FGV, cabe perfeitamente ao caso. “A estatística é a arte de torturar os números até que eles confessem”.