◉Atualizado em 30/04/2020 · 17:37 (BRT)
Seja na crise existencial de uma dentista bem-sucedida, no desencanto de um homem com a velhice ou pelas indagações de uma dona de casa dividida entre largar e continuar dependente de um marido violento, as obras do quadrinista Marcello Quintanilha convidam para um mergulho na vida cotidiana. Nascido em Niterói, o artista de 47 anos é um dos nomes nacionais mais relevantes de sua geração na nona arte, acumulando prestígio e elogios da crítica tanto no Brasil quanto no exterior.
Muito se deve pela repercussão da graphic novel “Tungstênio”, lançada em 2014 pela Editora Veneta. A obra já ganhou edições na Espanha, França, Alemanha, Itália, Polônia, foi premiada em Angoulême — principal festival internacional das HQs — e, recentemente, também ganhou adaptação para as telonas nas mãos do cineasta Heitor Dhalia (“O cheiro do ralo”), em cartaz desde o final do mês de junho. Ambientada em Salvador, na Bahia, a história acompanha os desdobramentos de uma confusão envolvendo pescadores ilegais, um policial violento, um ex-sargento do exército e um jovem traficante.
A escolha do título, inspirada no metal duro e resistente à corrosão, ressalta o teor da história. “Tungstênio é um tacômetro do estresse que permeia as relações interpessoais”, descreve Quintanilha, autor também de “Todos os Santos”, “Talco de Vidro” e “Hinário Nacional”. Em entrevista dada à ZACHPOST, o quadrinista — que mora na Espanha há mais de uma década — explica sobre o processo criativo da premiada obra e as questões tratadas na narrativa, como a falta de tolerância, relacionamentos abusivos e as tensões sociais nas regiões marginalizadas.
Quais foram as referências artísticas e culturais presentes no processo criativo de “Tungstênio?
“São as mesmas que me acompanham ao longo do tempo, como o cinema neorrealista e a literatura brasileira, mas, principalmente, tudo aquilo que pude apreender da cidade de Salvador desde a primeira em vez que a visitei em 2003. Todo o material recolhido, entre fotos e entrevistas, o contato com as pessoas, os intermináveis percursos pelas vielas e bairros periféricos. Estar na cidade foi como encontrar-me comigo mesmo, pelo papel que ocupa na gênese de nossa formação como povo”.
A obra apresenta personagens psicologicamente densos, repletos de falhas e intenções subentendidas, passando por situações repletas de tensão mas também por coisas muito comuns. De que forma a realidade e as relações sociais conduzem o seu trabalho como artista?
“Elas o determinam quase na totalidade, porque são a mola mestra de sua engrenagem; são o ponto de partida para toda e qualquer experiência de comunicação que pretenda estabelecer com o leitor”.
Tungstênio dialoga com algumas questões da história recente no país e também no que se refere a vida privada, a violência policial, saudosismo pelo regime militar, machismo e relacionamentos abusivos. Quais são suas observações a respeito desses pontos, quatro anos depois da publicação da obra?
“O momento pelo qual passamos me parece extraordinariamente promissor, no sentido de que nunca tivemos uma oportunidade tão clara de esquadrinhar a sociedade brasileira em toda sua diversidade, graças ao advento da internet, que também subverteu completamente a forma como acessamos a informação. Temas historicamente alijados da discussão política cotidiana ganharam proeminência nunca vista e me sinto particularmente satisfeito de que finalmente venham a ser debatidos fora dos círculos acadêmicos ou protocolares — só lamento que isto tenha demorado tanto para acontecer. “Tungstênio” é um tacômetro do estresse que permeia as relações interpessoais, tanto em relação à época da publicação quanto ao tempo presente”.
Outras de suas obras contém personagens que parecem ter herdado algumas características de personagens já apresentados ou, de certo modo, calcados no imaginário popular. Pode-se dizer que você desenvolveu uma “relação especial” com certos tipos arquetípicos?
“O caso do personagem Seu Ney é particularmente emblemático nesse sentido, ao representar por uma figura recorrente na ficção brasileira, produto de uma formação autoritária, por vezes folclórica, por vezes dramaticamente real e tangível. Além disto, minha relação com arquétipos se estabelece também em uma chave auto-referencial, pela constante reaparição de personagens e coisas intimamente ligadas a minha mitologia pessoal, como o jogador de futebol de divisões inferiores, o militar de baixa patente, comunidades de pescadores, etc”.
E como é ver o seu trabalho adaptado no cinema e como reagiu quando soube da intenção de transpor os quadrinhos nas telonas?
“É magnífico, especialmente graças à extrema dedicação e compreensão de todas as pessoas envolvidas no processo, obtendo uma fidelidade conceitual em relação à obra original que ultrapassa quaisquer critérios regularmente aplicados a adaptações”.
Foto do topo: Marcello Quintanilha: momento promissor para discutir os problemas do país (Foto: Luciana de Oliveira/Divulgação)